O texto a seguir foi escrito por Lima Barreto e está presente em seu livro FEIRAS E MAFUÁS, datado de 13/03/1930. Nesse texto, de título A UNIVERSIDADE, o autor faz uma crítica a estrutura da instituição de ensino superior, vulgo ensino de 3 º grau, ou ainda, a universidade.
Apesar de concordar com boa parte das palavras de Lima Barreto, não posso deixar de expressar minha particular e humilde opinião em que, enfatizo a importância de consideração de todo e qualquer conhecimento, seja ela vindo de instituições de ensino hierarquicamente estruturadas ou transmitido oralmente através de gerações. Digo isso por conta das opiniões que já ouvi e não concordei, quando observei na fala de amigos, colegas e desconhecidos, intenções de desprezo que se prendiam a pontos específicos de certas estruturas e que acabavam por desconsiderar conhecimentos vastos que não diziam respeito a realidade do falante.
Urbanóide que sou, certa vez me fui ao litoral tirar férias. Estando lá encontrei um nativo que gentilmente puxou uma conversa comigo ao mesmo tempo em que admirávamos a beleza estonteante da linha do horizonte no alto mar. Entre palavras soltas e histórias do passado esse velho senhor me contou uma ficção em que um homem dotado de alta capacidade intelectual pediu a um pescador uma carona para o outro lado da ilha. O pescador, seguindo o seu protocolo de trabalho diário, levou o intelectual de graça pois o caminho desejado pelo mesmo era igual ao que o pescador fazia todos os dias. No meio do caminho o intelectual, que levava muitos livros consigo, perguntou ao pescador:
- o senhor sabe ler ?
- Não sei. respondeu o pescador.
-Como não ?? respondeu o intelectual. Ler é uma grande dádiva e, desculpe-me o senhor, mas não sabendo ler o senhor perdeu, no mínimo e chutando baixo, metade de sua vida.
O pescador que já era ciente dessa deficiência, consentiu com o intelectual mas não poder fazer nada e não viu nenhuma vantagem em aprender a ler em tal estágio avançado de sua vida.
Algum tempo depois o intelectual reapareceu e pediu ao pescador que o ajudasse na mesma tarefa. Só que desta vez para voltar de onde eles haviam partido certa vez.
Conversa ia e conversa voltava entre o intelectual e o pescador até que no meio do caminho o tempo fechou e o mar, até então calmo, tornou-se um liquidificador de barcos, forçando a queda do pescador e do intelectual na água que antes de cair ainda puder trocar algumas palavras:
- O senhor sabe nadar ? perguntou o pescador.
- Não sei, respondeu o intelectual.
- Então o senhor perdeu toda a sua vida.
Eu olhei para o meu lado reparando nas vestes de pescador que esse senhor portava. Na mesma hora ele me disse:
- Nadar é coisa mais importante do mundo.
Eu me virei para frente novamente e fitei o encantado horizonte. Não consegui me concentrar em sua beleza, estava refletindo nas palavras do velho senhor. Que naquela hora disse algo que realmente me fez sentir a vida. Entendendo que saber nadar estando de frente para tanta água era o que eu mais deveria saber no momento...
Defendendo todo e qualquer conhecimento, desde que contextualizado em sua possibilidade real de aplicação, deixo minhas palavras e apresento, Lima Barreto.
A Universidade
Voltam os jornais a falar que é tenção do atual governo criar nesta cidade uma universidade. Não se sabe bem por quê e a que ordem de necessidade vem atender semelhante criação. Não é novo o propósito e de quando em quando, ele surge nas folhas, sem que nada justifique e sem que venha remediar o mal profundo do nosso chamado ensino superior.
Recordação da idade média, a universidade só pode ser compreendida naquele tempo de reduzida atividade técnica e científica, a ponto de, nos cursos de suas vetustas instituições de ensino, entrar no estudo de música e creio mesmo a simples aritmética.
Não é possível, hoje, aqui no Brasil, que essa tradição universitária chegou tão diluída, criar semelhante coisa que não obedece ao espírito do nosso tempo, que quer nas profissões técnicas cada vez mais especialização.
O intuito dos propugnadores dessa criação é dotarnos com um aparelho decorativo, suntuoso, naturalmente destinado a fornecer ao grande mundo festividades brilhantes de colação de grau e sessões solenes.
Nada mais parece que seja o intuito da ereção da nossa universidade.
De todos os graus de nosso ensino, o pior é o superior; e toda a reforma radical que se quisesse fazer nele, devia começar por suprimi-lo completamente.
O ensino primário tem inúmeros defeitos, o secundário maiores, mas o superior, sendo o menos útil e o mais aparatoso, tem o defeito essencial de criar ignorantes com privilégios marcados em lei, o que não acontece com os dois outros.
Esses privilégios e a diminuição da livre concorrência que eles originam, fazem que as escolas superiores fiquem cheias de uma porção de rapazes, alguns às vezes mesmo inteligentes, que, não tendo nenhuma vocação para as profissões em que simulam estar, só têm em vista fazer exames, passar nos anos, obter diplomas, seja como for, a fim de conseguirem boas colocações no mandarinato nacional e ficarem cercados do ingênuo respeito com que o povo tolo cerca o doutor.
Outros que só se destinam a ter título de engenheiro que efetivamente quer ser engenheiro e assim por diante, de forma que o sujeito se dedicasse de fato aos estudos respectivos, não se consegue com um simples rótulo de universidade ou outro qualquer.
Os estudos propriamente de medicina, de engenharia, de advocacia, etc. deviam ficar separados completamente das doutrinas gerais, ciências constituídas ou não, indispensáveis para a educação espiritual de quem quer ter uma opinião e exprimi-la sobre o mundo e sobre o homem.
A esse ensino, o estado devia subvencionar direta ou indiretamente; mas o outro, o técnico, o de profissão especial, cada um fizesse por si, exigindo o Estado para os seus funcionários técnicos que eles tivessem um estágio de aprendizagem nas suas oficinas, estradas, hospitais, etc...
Sem privilégios de espécie alguma, tendo cada um de mostrar as suas aptidões e preparo na livre concorrência com os rivais, o nível do saber e da eficiência dos nossos técnicos (palavra da moda) havia de subir muito.
A nossa supertição doutoral admite abusões que, bem examinadas, são de fazer rir.
Por exemplo, temos todos nós como coisa muito lógica que o diretor do Lloyd deve ser engenheiro civil. Por quê ? Dos telégrafos, dos correios – por quê também ?
Aos poucos, na Central do Brasil, os engenheiros foram avassalando os grandes empregos da “gema”.
Por quê ?
Um estudo nesse sentido exigiria um trabalho minucioso de exames de textos de leis e regulamentos que está acima da minha paciência; mas era bom que alguém tentasse fazê-lo, para mostrar que a doutomania não foi criada pelo povo, nem pela avalanche de estudantes que enche nossas escolas superiores; mas pelos dirigentes , às vezes secundários, que a fim de satisfazer preconceitos e imposições de amizade, fora, pouco a pouco ampliando os direitos exclusivos do doutor.
Ainda mais. Um dos males, decorrentes dessa supertição doutoral, está na ruindade e na estagnação mental do nosso professorado superior e secundário.
Já não bastava a indústria do ensino para fazê-lo mandrião e rotineiro, veio ainda por cima a época dos negócios e das concessões.
Explico-me:
Um moço que, aos trinta anos, se faz substituto de uma nova faculdade ou escola superior, não quer ficar adstrito às funções de seu ensino. Pára no que aprendeu, não segue o desenvolvimento da matéria que professa. Trata de arranjar outros empregos, quando fica nisso, ou, se não – o que é pior – mete-se no mundo estridente das especulações monetárias e industriais da finança internacional.
Ninguém quer ser professor como são os da Europa, de vida modesta, escarafunchando os seus estudos, seguindo o dos outros e com eles comunicando ou discutindo. Não; o professor brasileiro quer ser um homem de luxo e representação, para isso, isto é, para ter meios de custear isso, deixa às urtigas os seus estudos especiais e empresta o seu privilégio aos homens de muitas ocupações bem ou mal-intencionados.
Para que exemplificar ? Tudo isso é muito sabido e basta que se fale em geral, para que a indicação de um mal geral não venha a aparecer como despeito e ataque pessoal.
A universidade, coisa sobremodo obsoleta, não vem curar o mal do nosso ensino que viu passar todo o século de grandes descobertas e especulações mentais de toda a sorte, sem trazer, por qualquer dos que o versavam, um quinhão por mínimo que fosse.
O caminho é outro; é a emulação.