04 março, 2008

GIBRAN, CALVINO, HUCK e FERRÉZ


Outro dia eu estava lendo O PROFETA de GIBRAN KHALIL GIBRAN e entre todas as passagens (mensagens) que o livro nos permite usufruir, algumas me chamaram a atenção. O que faz um livro de 1923 ser tão atual e perturbador é o fato do autor estar preocupado em problematizar a vida e a condição em que vivemos, sendo essa condição a de estarmos juntos, compatilhando a mesma casa comum, o planeta terra, e com responsabilidades coletivas, como uma grande família, levantando questões que estrapolam o indivíduo, o coletivo e o estrutural. Chegamos com GIBRAN KHALIL GIBRAN a um ponto em que essas três frentes, a consciência individual, o todo coletivo e o extrato estrutural caminham juntas, indissociavelmente, com uma parte dependendo intimamente das outras duas.

Assim, o que se constroi em O PROFETA é uma corrente. Um elo entre os três mundos onde as influências e consequências são mutuas e inseparáveis. O leitor parte nesse livro para uma aprofundada (isso vai depender de sua vontade pessoal) introspecção filosófica, psicológica e social. Levantando questionamentos que extrapolam os próprios limites objetivos do livro e que podem resultar em mudanças práticas em sua vida.

Neste poste procurei trazer uma passagem de O PROFETA que me chamou a atenção e que, penso eu, tem proximidade intima com um texto que gosto muito do ITALO CALVINO, chamado CIDADES INVISÍVEIS. Além disso, ainda poderíamos linkar essas duas passagens que serão citadas abaixo com o episódio envolvendo o apresentador de televisão Lucino Huck e o escritor de literatura periférica Ferréz, que debateram publicamente sobre o problema da violência e da desigualdade social no Brasil.



O PROFETA – GIBRAN KHALIN GIBRAN

E ouvi isto, embora a palavra deva pesar rudemente sobre vossos corações:
O assassino é censurável por seu próprio assassínio.
E o roubado não é isento de culpa por ter sido roubado.
E o justo não é inocente das ações do mau.
Sim, o culpado é, muitas vezes, a vítima do ofendido.
E mais comumente ainda, o condenado carrega o fardo para o inocente e o irreprochável.
Vós não podeis separar o justo do injusto e o bom do malvado;
Porque ambos caminham juntos diante da face do sol, exatamente com os fios branco e negro são tecidos juntos.
E quando o fio negro rompe-se, o tecelão verifica todo o tecido e examina também o tear.



ITALO CALVINO – CIDADES INVISÍVEIS

Em vez de falar de Berenice, cidade injusta, que coroa com tríglifos ábacos métopes as engrenagens de suas máquinas de triturar carne, eu deveria falar de Berenice oculta, a cidade dos justos, atarefados com materiais de fortuna à sombra de almoxarifados e vãos de escada, atando uma rede de fios e tubos e roldanas e bielas e contrapesos, que se infiltra como uma trepadeira entre as grandes rodas dentadas; em vez de representar as piscinas perfumadas das termas em cujas bordas se estendem os injustos de Berenice enquanto tecem as suas intrigas com redonda eloqüência e observam com olhar dominador as carnes redondas das odaliscas que se banham, deveria falar de como os justos, sempre prudentes em evitar as declarações dos mentirosos e as armadilhas dos guardas do tirano, reconhecem-se pelo modo de falar, especialmente pela pronúncia das vírgulas e dos parênteses; dos costumes que parecem severos e inocentes eludindo os estados de ânimo complicados e sombrios; da cozinha sóbria mas saborosa que reevoca uma antiga idade de ouro: sopa de arroz e aipo, favas cozidas, flores de abobrinhas fritas.

A partir destes dados é possível inferir uma imagem da futura Berenice, que estará mais próxima do conhecimento da verdade do que qualquer notícia sobre o atual estado da cidade. Contanto que se tenha em mente o que estou para dizer: na origem da cidade dos justos está oculta, por sua vez, uma semente maligna; a certeza e o orgulho de serem justos – e de sê-lo mais do que tantos outros que dizem ser mais justos do que os justos -, fermentando rancores, rivalidades, teimosias, e o natural desejo de represália contra os injustos se contamina pelo anseio de estar em seu lugar e fazer o mesmo que eles. Uma outra cidade injusta, portanto, apesar de diferente da anterior, está cavando o seu espaço dentro do duplo invólucro das Berenices justa e injusta.

Dito isto, se não desejo que seu olhar colha uma imagem deformada, devo atrair a sua atenção para a qualidade intrínseca dessa cidade injusta quer germina em segredo na secreta cidade justa: trata-se do possível despertar – como um violento abrir de janelas – de um amor latente pela justiça, ainda não submetido a regras, capaz de compor uma cidade ainda mais justa do que era antes de se tornar recipiente de injustiça. Mas, se se investiga ulteriormente no interior deste novo germe de justiça, descobre-se uma manchinha que se dilata na forma de crescente inclinação a impor o justo por meio do injusto, e talvez seja o germe de uma imensa metrópole...

Pelo meu discurso, pode-se tirar a conclusão de que a verdadeira Berenice é uma sucessão no tempo de cidades diferentes, alternadamente justas e injustas. Mas o que eu queria observar é outra coisa: que todas as futuras Berenices já estão presentes neste instante, contidas uma dentro da outra, apertadas espremidas inseparáveis.



PENSAMENTOS QUASE PÓSTUMOS – LUCIANO HUCK

Pago todos os impostos. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa
LUCIANO HUCK foi assassinado. Manchete do “Jornal Nacional” de ontem. E eu, algumas páginas à frente neste diário, provavelmente no caderno policial. E, quem sabe, uma homenagem póstuma no caderno de cultura.
não veria meu segundo filho. Deixaria órfã uma inocente criança. Uma jovem viúva. Uma família destroçada. Uma multidão bastante triste. Um governador envergonhado. Um presidente em silêncio.
Por quê? Por causa de um relógio.
Como brasileiro, tenho até pena dos dois pobres coitados montados naquela moto com um par de capacetes velhos e um 38 bem carregado.
Provavelmente não tiveram infância e educação, muito menos oportunidades. O que não justifica ficar tentando matar as pessoas em plena luz do dia. O lugar deles é na cadeia.
Agora, como cidadão paulistano, fico revoltado. Juro que pago todos os meus impostos, uma fortuna. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa.
Adoro São Paulo. É a minha cidade. Nasci aqui. As minhas raízes estão aqui. Defendo esta cidade. Mas a situação está ficando indefensável.
Passei um dia na cidade nesta semana -moro no Rio por motivos profissionais- e três assaltos passaram por mim. Meu irmão, uma funcionária e eu. Foi-se um relógio que acabara de ganhar da minha esposa em comemoração ao meu aniversário. Todos nos Jardins, com assaltantes armados, de motos e revólveres.
Onde está a polícia? Onde está a “Elite da Tropa”? Quem sabe até a “Tropa de Elite”! Chamem o comandante Nascimento! Está na hora de discutirmos segurança pública de verdade. Tenho certeza de que esse tipo de assalto ao transeunte, ao motorista, não leva mais do que 30 dias para ser extinto. Dois ladrões a bordo de uma moto, com uma coleção de relógios e pertences alheios na mochila e um par de armas de fogo não se teletransportam da rua Renato Paes de Barros para o infinito.
Passo o dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes e como tentar fazer este país mais bacana. TV diverte e a ONG que presido tem um trabalho sério e eficiente em sua missão. Meu prazer passa pelo bem-estar coletivo, não tenho dúvidas disso. Confesso que já andei de carro blindado, mas aboli. Por filosofia. Concluí que não era isso que queria para a minha cidade. Não queria assumir que estávamos vivendo em Bogotá. Errei na mosca. Bogotá melhorou muito. E nós? Bem, nós estamos chafurdados na violência urbana e não vejo perspectiva de sairmos do atoleiro.
Escrevo este texto não para colocar a revolta de alguém que perdeu o rolex, mas a indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo e concluir -com um 38 na testa- que o país está em diversas frentes caminhando nessa direção, mas, de outro lado, continua mergulhado em problemas quase “infantis” para uma sociedade moderna e justa.
De um lado, a pujança do Brasil. Mas, do outro, crianças sendo assassinadas a golpes de estilete na periferia, assaltos a mão armada sendo executados em série nos bairros ricos, corruptos notórios e comprovados mantendo-se no governo. Nem Bogotá é mais aqui.
Onde estão os projetos? Onde estão as políticas públicas de segurança? Onde está a polícia? Quem compra as centenas de relógios roubados? Onde vende? Não acredito que a polícia não saiba. Finge não saber.
Alguém consegue explicar um assassino condenado que passa final de semana em casa!? Qual é a lógica disso? Ou um par de “extraterrestres” fortemente armado desfilando pelos bairros nobres de São Paulo?
Estou à procura de um salvador da pátria. Pensei que poderia ser o Mano Brown, mas, no “Roda Vida” da última segunda-feira, descobri que ele não é nem quer ser o tal.
Pensei no comandante Nascimento, mas descobri que, na verdade, “Tropa de Elite” é uma obra de ficção e que aquele na tela é o Wagner Moura, o Olavo da novela. Pensei no presidente, mas não sei no que ele está pensando.
Enfim, pensei, pensei, pensei. Enquanto isso, João Dória Jr. grita: “Cansei”. O Lobão canta: “Peidei”.
Pensando, cansado ou peidando, hoje posso dizer que sou parte das estatísticas da violência em São Paulo. E, se você ainda não tem um assalto para chamar de seu, não se preocupe: a sua hora vai chegar.
Desculpem o desabafo, mas, hoje amanheci um cidadão envergonhado de ser paulistano, um brasileiro humilhado por um calibre 38 e um homem que correu o risco de não ver os seus filhos crescerem por causa de um relógio.Isso não está certo.



PENSAMENTOS DE UMA CORRERIA - FERRÉZ

"Ele não terá homenagem póstuma se falhar. Pensa: "Como alguém usa no braço algo que dá pra comprar várias casas na quebrada?"ELE ME olha, cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma seu café de um gole só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um assalto. Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem gerar impostos. Quando o filho chora de fome, moral não vai ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada. O motoboy tenta se afastar, desconfia, pois ele está com outro na garupa, lembra das 36 prestações que faltam pra quitar a moto, mas tem que arriscar e acelera, só tem 20 minutos pra entregar uma correspondência do outro lado da cidade, se atrasar a entrega, perde o serviço, se morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga. Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, dá um toque no acelerador e sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita. Enquanto isso, muitos em seus carros ouvem suas músicas, falam em seus celulares e pensam que estão vivos e num país legal. Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o trânsito. Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa. Ela começou a beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos seus comerciais, só que, neles, ninguém sofre por beber. Teve educação, a mesma que todos da sua comunidade tiveram, quase nada que sirva pro século 21. A professora passava um monte de coisa na lousa -mas, pra que estudar se, pela nova lei do governo, todo mundo é aprovado? Ainda menino, quando assistia às propagandas, entendia que ou você tem ou você não é nada, sabia que era melhor viver pouco como alguém do que morrer velho como ninguém. Leu em algum lugar que São Paulo está ficando indefensável, mas não sabia o que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de guerra. Não acreditava em heróis, isso não! Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto. Tomava tapa na cara do seu padrasto, tomava tapa na cara dos policiais, mas nunca deu tapa na cara de nenhuma das suas vítimas. Ou matava logo ou saía fora. Era da seguinte opinião: nunca iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso. Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que, apesar de morar perto do lixo, não fazia parte dele, não era lixo. A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se perguntava como alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu que trabalharam a vida inteira sendo babá de meninos mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final, ficaram velhas, morreram e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos! Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em seu programa. Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria como recorrer ao seguro nem teria segunda chance. O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou. No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.

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