Existem muitas formulas criadas para que o conhecimento que foi desenvolvido universalmente possa ser transmitido de geração à geração. Podemos ver isso manifestado principalmente nos métodos existentes para o aprendizado de uma língua estrangeira, o que se expressa no gigantesco número de escola de idioma, principalmente o inglês, que se precipitam pelo Brasil. Cada escola de idioma opta por utilizar um método diferente que, em geral, é o que faz a fama da escola, sendo ela procurada justamente por causa do método específico.
Dentro do ambiente acadêmico, em cada universidade especificamente, podemos dizer que existe uma forma diferente de ensinar, que se manifesta de uma forma similar com o que acontece com as escolas de idioma. Começando pelo conteúdo escolhido e terminando pela forma da cobrança que caí sobre o alunado, as universidades, tanto as públicas quanto as particulares – tirando as condições que dão prestígio particular a cada universidade (contanto o número de artigos publicados, professores de renome nacional e internacional e, até mesmo, o preço e a localidade) – tem métodos diferentes de incentivar o processo de aquisição de conhecimento em seus alunos. Tão diferente que as vezes o que é considerado conhecimento em uma instituição superior pode não ser considerado em outra universidade.
Essa diferença metodológica é o que possibilita uma formação diversificada em nossa sociedade, fazendo surgir dessa forma uma multiplicidade de pessoas que defendem os mais variados conhecimentos. Dentro dessa variado hall de conhecimentos podemos visializar, de uma forma bem grotesca, a formação de dois grupos gerais nas pontas desse hall. Um grupo de pessoas que apenas discursam sobre esses conhecimentos, não permitindo réplicas ou qualquer outra manifestação da parte daqueles que escutam(falsos conhecedores); e um outro grupo, de pessoas que se preocupam em arquitetar melhor as idéias que tem em mãos, essas são como artesãos, conhecem todas as passagens do que estão falando e podem conversar sobre isso sem problemas, expondo as limitações do próprio conhecimento que debatem(verdadeiros problematizadores).
Tendo esses dois grupos em mente, o grupo da pessoa que vomita conhecimentos e o agrupamento da pessoa que trabalha com eles, desejo mostrar duas passagens que explicitam a formação desses dois tipos de seres. A primeira passagem ilustra o mero reprodutor, aquele que não se permite a ter opiniões próprias e se contenta em reproduzir por reproduzir apenas para atingir seus objetivos políticos e sociais. A segunda passagem trabalha pelo lado oposto dessa primeira proposta. Tenta trazer à luz a importância de um aprendizado consistente e aprofundado, que não se contenta com formulas científicas prontas ou frases de efeito, um conhecimento que perpassa sua própria condição da existência, se questionando e se desenvolvendo constantemente, nunca se dando por acabado.
A primeira passagem foi escrita por MACHADO DE ASSIS em 1881 para o jornal gazeta de notícias e se chama TEORIA DO MEDALHÃO. A história começa com um pai conversando com o filho após o jantar de aniversário deste, que completa 21 anos, falando que na vida uns são conhecidos (e reconhecidos) e outros são anônimos, estes últimos sendo a maioria. E o pai fala que vai ensinar ao filho uma profissão para recompensar o esforço durante a vida, caso as outras profissões falhem.
A segunda passagem foi escrita por um irlandês, JAMES JOYCE publica em 1916 o romance intitulado O RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM. Em uma obra com retoques visivelmente autobiográficos, JOYCE desenvolve suas impressões sobre sua própria infância, adolescência e juventude, onde ficam marcadas a fraca figura do pai, a rígida paixão religiosa da mãe, o rigor da educação jesuísta, a linda e explorada pátria irlandesa, com a ocupação do estrangeiro e a mistura entre o mundo político e religioso e a alma irlandesa em sua plenitude, com um ideal patriótico encarnado por líderes irlandeses.
Bom, aproveitem a leitura. Com vocês:
TEORIA DO MEDALHÃO – MACHADO DE ASSIS
—Estás com sono?
— Não, senhor.
— Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?
— Onze.
— Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...
— Papai...
-Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt[1] e Napoleão, apesar de precoces, não foram tudo aos vinte e um anos. Mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.
— Sim, senhor.
— Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. E isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.
— Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?
— Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito
— É verdade, por que quarenta e cinco anos?
— Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se entre os quarenta e cinco e cinqüenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem entre os cinqüenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia, vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.
— Entendo.
— Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas idéias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá com as idéias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.
— Mas quem lhe diz que eu...
— Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança. No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.
— Creio que assim seja; mas um tal obstáculo é invencível.
— Não é; há um meio; é lançar mão de um regime debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos, etc. O voltarete, o dominó e o whist[2] são remédios aprovados. O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção. Não digo o mesmo da natação, da equitação e da ginástica, embora elas façam repousar o cérebro; mas por isso mesmo que o fazem repousar, restituem-lhe as forças e a atividade perdidas. O bilhar é excelente.
— Como assim, se também é um exercício corporal?
— Não digo que não, mas há coisas em que a observação desmente a teoria. Se te aconselho excepcionalmente o bilhar é porque as estatísticas mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as opiniões do mesmo taco. O passeio nas ruas, mormemente nas de recreio e parada é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de idéias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.
— Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?
— Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade.[3] 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses —suponhamos dois anos, — reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das idéias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim...
— Isto é o diabo! Não poder adornar o estilo, de quando em quando...
— Podes; podes empregar umas quantas figuras expressivas, a hidra de Lerna, por exemplo, a cabeça de Medusa, o tonel das Danaides, as asas de Icaro, e outras, que românticos, clássicos e realistas empregam sem desar, quando precisam delas. Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant, consules[4] é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum[5]. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício; seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado. Quanto à utilidade de um tal sistema, basta figurar uma hipótese. Faz-se uma lei, executa-se, não produz efeito, subsiste o mal. Eis aí uma questão que pode aguçar as curiosidades vadias, dar ensejo a um inquérito pedantesco, a uma coleta fastidiosa de documentos e observações, análise das causas prováveis, causas certas, causas possíveis, um estudo infinito das aptidões do sujeito reformado, da natureza do mal, da manipulação do remédio, das circunstâncias da aplicação; matéria, enfim, para todo um andaime de palavras, conceitos, e desvarios. Tu poupas aos teus semelhantes todo esse imenso arranzel, tu dizes simplesmente: Antes das leis, reformemos os costumes! — E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.
— Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos modernos.
— Entendemo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação, O mesmo direi de toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. Conquanto o rasgo peculiar do medalhão seja uma certa atitude de deus Término[6], e as ciências sejam obra do movimento humano, como tens de ser medalhão mais tarde, convém tomar as armas do teu tempo. E de duas uma: — ou elas estarão usadas e divulgadas daqui a trinta anos, ou conservar-se-ão novas: no primeiro caso, pertencem-te de foro próprio; no segundo, podes ter a coquetice de as trazer, para mostrar que também és pintor. De outiva, com o tempo, irás sabendo a que leis, casos e fenômenos responde toda essa terminologia; porque o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular idéias novas, e é radicalmente falso. Acresce, que no dia em que viesses a assenhorear-te do espírito daquelas leis e fórmulas, serias provavelmente levado a empregá-las com um tal ou qual comedimento, como a costureira — esperta e afreguesada, — que, segundo um poeta clássico,
Quanto mais pano tem, mais poupa o corte,
Menos monte alardeia de retalhos;
e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.
— Upa! que a profissão é difícil.
— E ainda não chegamos ao cabo.
— Vamos a ele.
— Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureíra e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heróicas ou custosas é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado Científico da Criação dos Carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa. Explico-me. Se caíres de um carro, sem outro dano, além do susto, é útil mandá-lo dizer aos quatro ventos, não pelo fato em si, que é insignificante, mas pelo efeito de recordar um nome caro às afeições gerais. Percebeste?
— Percebi.
— Essa é publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias; mas há outra. Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância. Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em qualquer casa pública. Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na sessão inaugural da União dos Cabeleireiros, reconhecerão na compostura das feições o autor dessa obra grave, em que a “alavanca do progresso" e o “suor do trabalho”, vencem as “fauces hiantes” da miséria. No caso de que uma comissão te leve à casa o retrato, deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo d’água: é uso antigo, razoável e honesto. Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos reporters dos jornais. Em todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-los de certa maneira, redigindo tu mesmo, a noticia da festa; e, dado que por um tal ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.
— Digo-lhe que o que vosmecê me ensina não é nada fácil.
— Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
—E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits da vida?
— Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.
— Nem política?
— Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth[7] bíblico.
— Se for ao parlamento, posso ocupar a tribuna?
— Podes e deves; é um modo de convocar a atenção pública. Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: — ou os negócios miúdos, ou a metafísica política, mas prefere a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; — é mais fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente pelo Ministro da Guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória. Em todo caso, não transcendas nunca os limites de uma invejável vulgaridade.
— Farei o que puder. Nenhuma imaginação?
— Nenhuma; antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo.
— Nenhuma filosofia?
— Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. “Filosofia da história”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.
— Também ao riso?
— Como ao riso?
— Ficar sério, muito sério...
— Conforme. Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente, — e este ponto é melindroso...
— Diga.
— Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano[8], transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. Que é isto?
— Meia-noite.
— Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale O Príncipe[9] de Machiavelli. Vamos dormir.
RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM – JAMES JOYCE
Abriu a porta do anfiteatro e ficou parado na luz friorenta, uma luz cinzenta que lutava por entrar através das janelas empoeiradas. Uma figura estava agachada diante da grande fornalha, e por sua magreza e ar grisalho percebeu logo que era o deão dos estudos que estava a acender o fogo. Stephen fechou a porta sem ruído e se aproximou do fogão.
- Bom dia, senhor. Posso ajudá-lo?
O padre imediatamente olhou para cima e disse:
- Um momento só, senhor Dedalus, e vai ver. Isso de acender o fogo constitui uma arte. Temos as artes liberais e temos as artes úteis. Essa é uma das artes úteis.
- Vou experimentar aprendê-la – disse Stephen.
- Não pôr muito carvão – disse o deão, trabalhando ativamente na sua tarefa – é um dos segredos.
Tirou dos bolsos laterais da sotaina quatro mechas de vela e as colocou jeitosamente entre os carvões e jornais torcidos. Stephen observava-o calado. Ajoelhado assim sobre os pedaços de jornais e os pavios de ela, parecia, mais do que nunca, um humilde servidor preparando o lugar do sacrifício num templo vazio. Uma levita do Senhor. Como a veste de linho liso dum levita, a batina puída e descorada vestia aquela figura ajoelhada de alguém que os hábitos canônicos ou os paramentos bordados deviam irritar e perturbar. Todo o seu corpo envelhecera no serviço inferior do senhor – em vigiar o fogo sobre o altar, em dar testemunha de boas-novas, secretamente, em confiar nas pessoas mundanas, em bater apressadamente quando ordenado –, e, no entanto, tinha permanecido sem graça por insignificância de santidade ou de beleza prelatícia. Não só, até mesmo a sua alma se tornara velha naquele serviço, sem ter crescido para a luz e para a beleza e sem ter expandido para fora de si um doce odor de santidade – uma vontade mortificada, não correspondendo mais à emoção da sua obediência do que à emoção do amor ou ao combate do seu corpo envelhecido, poupada e robusta, algo grisalha com uma penugem discretamente prateada. O deão permanecia sobre os calcanhares e vigiava as fagulhas pegarem. Stephen, para encher o silêncio, disse:
- Tenho certeza de que não saberia acender um fogo.
- O senhor é um artista, não é mesmo, senhor Dedalus – disse o deão, olhando de esguelha para cima e piscando os seus olhos pálidos. – O objetivo dum artista é criar a beleza. Já o que seja a beleza é outra questão.
E friccionou as mãos vagarosamente, secamente, sobre a dificuldade.
- É capaz, agora, de resolver essa questão? – perguntou.
- São Tomás – respondeu Stephen – diz “pulcra sunt quae visa placent”.
- Este fogo aqui, na nossa frente – disse o deão – deve ser agravável à vista. Consequentemente, será ele bonito?
- Tanto quanto ele seja apreendido pela visão, a qual suponho signifique aqui intelecção estética, deve ser bonito. Mas são Tomás diz também: “Bonum est in quod tendit appetitus”. Até onde ele satisfaça o desejo animal para o calor, o fogo é bom. No inferno, todavia, ele é um mal.
- Perfeitamente – disse o deão –, o senhor acertou na cabeça do cravo.
Ergueu-se com desenvoltura, dirigiu-se para a porta, deixou-a entreaberta e disse:
- A corrente de ar, garantem alguns, ajuda bem em tais casos.
E como voltasse para o fogão, coxeando ao de leve mas com um passo lépido, Stephen viu a alma silenciosa dum jesuíta fitá-lo através daqueles olhos claros e sem amor. Como Inácio, ele era coxo, mas nos seus olhos não brilhava centelha alguma do entusiasmo de Inácio. Mesmo a lendária força da Companhia, um força mais sutil e mais secreta do que os seus fabulosos livros de sabedoria secreta e sutil, não havia inflamado a sua alma com a energia do apostolado. Era como se ele usasse os artifícios, conhecimentos e espertezas do mundo, com licença de o fazer para a maior glória de Deus, sem alegria no seu manejo e sem aversão por aquilo que neles era mal, mas com um firme gesto de paciência os fazendo retroceder sobre si mesmos, e por todo esse silencioso trabalho que não amava absolutamente o mestre e pouco, se é que os amava, a que servia. Similiter atque senis baculus era ele, como o fundador consideraria, como um cajado na mão dum velho para apoiar-se na estrada ao cair da noite ou no mau tempo, para ficar ao lado do ramalhete duma dama no banco dum jardim, para ser erguido em ameaça.
O deão voltou ao fogão e começou a afagar o queixo.
- Para quando podemos esperar alguma coisa sua, sobre a questão estética? – perguntou ele.
- De mim? – disse Stephen espantado. – Levo mais de quinze dias, às vezes, e isso mesmo se tenho sorte, embaraçado numa idéia.
- Essas questões são muito profundas, senhor Dedalus – disse o deão. – É a mesma coisa que olhar dos alcantis do Moher para as profundezas. Muitos caem no abismo e jamais voltam a cima. Só o mergulhador destro pode descer a tais profundidades, explorá-las e volta à superfície.
- O senhor está se referindo à especulação? – perguntou Stephen. – Eu também estou convencido de que não existe tal coisa, o pensamento livre, pois que todo o pensar deve estar sujeito às suas próprias leis.
- Ah!
- Estou com a intenção de continuar trabalhando presentemente à luz duma ou de das idéias de Aristóteles e de são Tomás.
- Compreendo. Estou compreendendo perfeitamente o seu ponto.
- Apenas preciso delas para o meu uso e guia até que tenha feito alguma coisa por mim mesmo, mas à luz delas. Se a lâmpada deita fumaça ou começa a cheirar, tentarei enchê-la. Se não der luz bastante, eu a venderei e comprarei uma outra.
- Também Epicteto tinha uma lâmpada – disse o deão –, que foi vendida por um preço irrisório depois da sua morte. Foi a lâmpada com a qual escreveu suas dissertações filosóficas.
- Também Epicteto tinha uma lâmpada – disse o deão –, que foi vendida por um preço irrisório depois de sua morte. Foi a lâmpada com a qual escreveu suas dissertações filosóficas. O senhor conhece Epicteto?
- Um antigo cavalheiro – respondeu Stephen – que disse que a alma se parecia muitíssimo com um balde cheio de água.
- Diz-nos ele com a sua maneira singela – continuo o deão – que tinha posto uma lâmpada de ferro diante da estátua dum dos deuses e que um ladrão roubou a lâmpada. Que fez o filósofo? Refletiu que estava no caráter dum gatuno roubar, e então resolveu comprar uma lâmpada de barro no dia seguinte, em vez duma de ferro.
Um cheiro de sebo derretido desprendeu-se dos pavios da velo do deão, e se fundiu na consciência de Stephen com o tinido daquelas palavras: “balde” e “lâmpada”, “lâmpada” e “balde”. A voz do padre, também, tinha um rude timbre. O espírito de Stephen ficou parado, por um instante, retido pelo timbre estranho e pela analogia, assim como pela cara do padre, que parecia uma lâmpada apagada ou um refletor pendendo um falso foco. Que havia atrás dela, ou dentro dela? Um brutal torpor de altar ou a opacidade de nuvem trovejante, carregada de intelecção e capaz da escuridão de Deus?
- Referia-me a uma outra espécie de lâmpada, senhor – disse Stephen.
- Indubitavelmente – disse o deão.
- Uma dificuldade – disse Stephen –, na discussão estética, é saber se as palavras estão sendo empregadas de acordo com a tradição literária ou de acordo com a tradição do mercado do dia. Lembro-me duma das sentenças de Newman, na qual diz da Virgem Maria que ela foi detida na total companhia dos santos. O uso da palavra no mercado do dia é inteiramente diferente. “Espero não estar detendo o senhor.”
- De modo algum – disse o deão, polidamente.
- Não, não – disse Stephen, sorrindo. – Refiro-me ...
- Ah! Sim, sim. Compreendo – disse o deão logo. – Apanhei a questão no seu todo: “deter”.
Deu um jeito para a frente com o maxilar inferior e articulou uma tosse seca e curta.
- Voltando à lâmpada – disse ele –, a alimentação dela é também um lindo problema. Deve-se escolher um óleo puro, e deve-se ter cuidado, ao entorná-lo, para que não derrame por fora, não entornando mais do que um funil pode conter.
- Qual funil? – perguntou Stephen.
- O funil através do qual o senhor derrama o óleo dentro da lâmpada.
- Ah! Isso se chama “funil”? – perguntou Stephen. – Não é “gargalo”?
- “Gargalo”? Que é isso?
- Isso?É... o funil.
- Na Irlanda chama-se a isso de “gargalo”? – perguntou o deão. – Nunca ouvi essa palavra com tal significação, n minha vida.
- Dão-lhe tal significação no baixo Drumcondra – disse Stephen, rindo –, onde falam o melhor inglês.
- “Gargalo” – disse o deão, refletindo. – é uma aplicação interessantíssima.
Hei de voltar a pensar nessa palavra. Palavra de honra que hei e pensar nela.
A sua cortesia de maneiras soava um pouco falsa, e Stephen encarou aquele inglês convertido com os mesmos olhos com que o irmão mais velho da parábola se deve ter voltado para o filho pródigo. Um simples continuador no despertar de clamorosas conversões, um pobre inglês na Irlanda, parecia haver penetrado no palco da história jesuistíca quando essa estranha peça de intriga, inveja, pertinácia, luta e indignidade, tendo dado tudo, acabou redundando pela entrada do último comparsa atrasado num espírito moroso. Donde teria vindo? Talvez tivesse nascido e tivesse sido educado entre sérios dissidentes, vendo apenas a salvação em Jesus e detestanto as vãs pompas do estabelecimento. Teria ele sentido necessidade duma fé implícita no meio do rebuliço do sectarismo e da dialética dos seus turbulentos cismas, entre homens de mais de seis doutrinas, nessa variedade confusa e ondulante de seitas e mais seitas? Teria ele encontrado assim de repente a verdadeira igreja como um fiapo de algodão cujos pontos se enrolam no ar ou um tenuíssimo fio de raciocínio, sobre a insuflação, a imposição das mãos ou a procissão do Espírito Santo? Ou lhe teria o Senhor Cristo tocado e convidado a segui-l´O, como aquele discípulo que estava sentado à porta dalguma capela de teto de zinco, bocejando e tratando dos dízimos da igreja?
O deão tornou a repetir a palavra:
- “Gargalo”. Já agora isso é interessante!
- A pergunta que o senhor me fez há pouco parece-me bem mais interessante. Que beleza é essa que o artista luta por exprimir nas lâmpadas de terracota? – disse Stephen friamente.
A pequena palavra parecia haver voltado a ponta de florete de sua sensibilidade contra esse cortês e vigilante antagonista. Sentiu como que um laivo de melancolia que esse homem com quem estava falando fosse um compatriota de Bem Jonson. Pensou:
“A linguagem que estamos falando é dele antes de ser minha. Quão diferentes são as palavras “lar”, “Cristo”, “cerveja”, “mestre” nos seus lábios e nos meus! Não posso escrever nem pronunciar tais palavras sem perturbação de espírito. A sua linguagem, tão familiar e tão estrangeira, será sempre para mim uma língua adquirida. Nem fiz nem aceitei as suas palavras. Minha voz segura-as entre talas. A minha alma gasta-se na sombra de sua linguagem”.
- E há que distinguir entre o belo e o sublime – acrescentou o deão –, distinguir entre beleza moral e a beleza material. E investigar que espécie de beleza é peculiar a cada uma das várias artes. Ora, aí estão alguns pontos que devemos estabelecer.
Stephen, desencorajado, inesperadamente, pelo tom seco e firme do deão, ficou calado; e através do silêncio um ruído distante de calçados e de vozes confusas veio vindo escadas acima.
- E no perseguir tais especulações – disse o deão conclusivamente –, está, no entanto, o perigo de perecer de inanição. Primeiro que tudo deve uma pessoa tomar a sua posição. Depois então, pouco a pouco, acabará vendo o seu caminho. Refiro-me em todos os sentidos, no modo de vida e no modo de pensar. Poderá ser difícil pedalar no começo. Tome, por exemplo, o senhor Moonan. Levou muito tempo até chegar
[1] William Pitt, o Jovem (1759-1806) : assumiu o cargo de primeiro-ministro britânico em 1783, com 24 anos.
[3] Charles Mazade (1820-93) figura central na Revue de Deux Mondes, onde escreveu sua crônica política entre 1852 e 1858 e de 1863 até
[4] Caveant, consules (latim) : cuidado, cônsules.
[5] Si vis pacem para bellum (latim) ; se queres a paz, prepara a guerra
[6] Término: na mitologia romana, deus dos limites e das fronteiras. Aqui, porém, parece que Machado usa o nome em estreita relação com a palavra terminologia.
[7] Esta história encontra-se em Juízes, 12: 5-6 : tendo derrotado os efraimitas, os galaaditas distinguiam entre os fugitivos os que eram efraimitas pelo modo como pronunciavam a palavra scibboleth (que significa "espiga" em hebraico), que os galaaditas pronuciavam "chibboleth, e os efraimitas, "siboboleth".
[8] Luciano de Samósata (c. 125-
[9] O Príncipe : obra política do italiano Niccoló Machiavelli (1469-1527) em que são dados os conselhos aos governantes sobre a melhor forma de dirigir os negócios do Estado e manter-se no poder.
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