27 fevereiro, 2008

O dilema da transgressão, o dilema do novo (conhecimento)

Salve pessoal.
Esse poste é um fragmento da obra de GRACILIANO RAMOS, um capítulo chamado INFERNO e que faz parte do livro INFÂNCIA. Esse livro conta o processo da, com já diz o título do livro, infância de um rapaz que vive com seus pais e suas duas irmãs no nordeste brasileiro. O fragmento escolhido representa uma das vezes em que o personagem principal, inserido em um momento de descobertas sobre o mundo, questiona a realidade imposta a ele, confrontando sua mãe sobre as verdades que lhes são dadas no contexto em que vivem.

Considero oportuno esse fragmento pois levanto a bandeira de necessariamente nos portarmos como leigos diante dos questionamentos sobre o mundo. Temos que nos preparar para o acaso, o inesperado e a surpresa. Deixando em aberto os caminhos que nossas vidas podem tomar. Quanto mais certezas tivermos sobre o que nos cerca, menores são as possibilidades de nós nos permitimos a novas experiências e menor também é a gama de caminhos que teremos oportunidade de seguir, fazendo com que nossas vidas se tornem algo pré-determinado e certo, estanque e natural, algo monotonamente estável.

A sede de conhecimentos é incompatível com a estabilidade. Ela é sedenta pelo novo e se apaixona a cada dia por aquilo que desconhece, propiciando um ciclo de encantamento que se encerra no dia em que esse conhecimento é revelado. A luz ofusca o conhecedor e isso faz com que esse tente se afastar da mesma. Quando mais próximo da luz o conhecedor se encontrar, mais problemas de visão ele terá e mais longe da condição de conhecedor ele se encontrará.

Infelizmente, nesse mundo em que estamos, a busca pela luz parece ser o grande ponto que todos querem alcançar. A estabilidade, inimiga natural do conhecimento, é o grande sonho de muitas pessoas. Talvez seja por isso mesmo que o mundo esteja em tamanho descompasso, achando que ter é melhor que ser ou que vomitar formulas prontas é melhor que admitir novos paradigmas, pensando em novas soluções.
Se me perguntarem sobre a cura dessa doença não darei soluções. Só alerto sobre a importância de recorrer ao nosso passado onde, provavelmente não encontremos as soluções para os nossos problemas mas, com certeza poderemos observar onde estão nossos erros, repara-los e abrir espaço...

GRACILIANO RAMOS – INFÂNCIA

INFERNO


As vezes minha mãe perdia as arestas e a dureza, animava-se, quase se embelezava. Catorze ou quinze anos mais moço que Lea, habituei-me, nessas tréguas curtas e valiosas, a julgá-la criança, uma companheira de gênio variável, que ra necessário tratar cautelosamente. Sucedia desprecatar-me e enfadá-la. Os catorze ou quinze anos surgiam entre nós, alargavam-se de chofre – e causavam-me desgosto.

Um dia, em maré de conversa, na prensa de farinha do copiar, minha mãe tentava compor frases no vocabulário obscuro dos folhetos. Eu me deixava embalar pela música. E de quando em quando aventurava perguntas que ficavam sem respostas e perturbavam a narradora.

Súbito ouvi palavra doméstica e veio-me a idéia de procurar a significação exata dela. Tratava-se do inferno. Minha mãe estranhou a curiosidade: impossível um menino de seis anos, em idade de entrar na escola, ignorar aquilo. Realmente eu possuía noções. O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal-educadas mandavam outras, em discussões. E num lugar existem casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi uma descrição. Minha mãe condenou a exigência e quis permanecer nas generalidades. Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei para a ciência dela. Porque não contava o negócio direitinho? Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os moradores, péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres, viviam depois de mortos em fogueiras maiores que as de São João e em tachas de breu derretido. Falou um pouco a respeito dessas criaturas.

Fogueira de São João eu conhecia. Tinha-se feito uma diante de casa. Eu andara à tardinha em redor do monte de lenha que o moleque José arrumava. Admirando os aprestos, espantava-me de haver nascido ali de supetão um mamoeiro carregado de frutos verdes. À noite deitara-se na pilha uma garrafa de querosene, viera um tição. E eu ficara na calçada até dez horas, olhando as labaredas, que meu pai alimentava com aduelas e sarrafos. A gente da vila mexia-se, ria e cantava, iluminada por outros fogos. No dia seguinte as folhas do mamoeiro se torravam, pulverizavam. E na rua, desentulhada, apareciam grandes manchas negras.

Também conhecia o breu derretido. No armazém, barricas finas continham sustância escura que, pisada, tomava a cor das moedas de vintém livres do azinhavre, raspadas no tijolo, molhadas e enxutas. Eu havia esfarelado um pedaço dessa maravilha, com um peso de meio quilo, junto à balança romana da loja. Tinha posto a massa dourada num cartucho de jornal, riscado um fósforo em cima e esperado o fenômeno. Uma lágrima correra no papel, alcançara-me o dedo anular, descera da unha à primeira falange. Largando a experiências, eu me desesperara, abafando os gritos, fora meter a mão num pote de água. Tinha sofrido em silêncio, receando que percebessem a traquinada e a queimadura.

Quando minha mãe falou em breu derretido, examinei minha cicatriz do dedo e balancei a cabeça, em dúvida. Se o pequeno torrão, esmagado com o peso de meio quilo, originara aquele desastre, como admitir que pessoas resistissem muitos anos a barricas cheias derramadas em tachas fundas, sobre a fogueira de São João?

- A senhora esteve lá ?

Desprezou a interrogação inconveniente e prosseguiu com energia.

- Eu queria saber se a senhora tinha estado lá.

Não tinha estado, mas as coisas se passavam daquela forma e não podiam passar-se de forma diversa. Os padres ensinavam que era assim.

- Os padres estiveram lá ?

A pergunta não significava desconfiança na autoridade. Eu nem pensava nisso. Desejava que me explicassem a região de hábitos curiosos. Não me satisfaziam as fogueiras, as tachas de breu, vítima e demônios. Necessitava pormenores.

Minha mãe estragara a narração com uma incongruência. Assegurava que os diabos se davam bem na chama e na brasa. Desconhecia, porém, a resistência das almas suplicadas. Dissera que elas suportariam padecimentos eternos. Logo insinuara que, depois de estágio mais ou menos longo, se transformariam em diabos. Indispensável esclarecer esse ponto. Não busquei razões, bastavam-me afirmações. Achava-me disposto a crer, aceitaria os casos extraordinários sem esforço, contato que não houvesse neles muita incompatibilidade. Reclamava uma testemunha, alguém que tivesse visto diabos chifrudos, almas nadando em breu. Ainda não me havia capacitado de que se descrevem perfeitamente coisas nunca vistas.

- Os padres estiveram lá ? tornei a perguntar

Minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinha estado, claro que não tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam tudo no seminário, nos livros.

Senti forte decepção: as chamas eternas e as caldeiras medonhas esfriaram. Começava a julgar a história razoável, adivinhava por que motivo Padre João Inácio, poderoso e meio cego, furava os braços da gente, na vacina. Com certeza o Padre João Inácio havia perdido um olho no inferno e de lá trouxera aquele mau costume. A resposta de minha mãe desiludiu-me, embaralhou-me as idéias. E pratiquei um ato de rebeldia:

- Não há nada disso.

Minha mãe esteve algum tempo analisando-me, de boca aberta, assombrada. E eu, indignação por se haverem dissipado as tachas do breu, os demônios, o prestígio de Padre João Ináciom repeti:

- Não há não. É conversa.
Minha mãe curvou-se, descalçou-se e aplicou-me várias chineladas. Não me convenci. Conservei-me dócil, tentando acomodar-me às esquisitices alheias. Mas algumas vezes fui sincero, idiotamente. E vieram-me chineladas e outros castigos oportunos.



Um comentário:

Angel Miríade disse...

Leo, é a Angel.

A tudo isso que você escreveu, e com o que eu concordo muito, eu tenho uma frase bastante emblemática do Guimarães Rosa: "O animal satisfeito dorme".
Quando estamos satisfeitos com alguma coisa, acabamos nos acomodando, dormindo (isso lembra a conversa filosófica do almoço). Nos acomodando com o que sabemos, com o que temos, com quem somos... E não acredito que essa estabilidade, essa rotina, seja benéfica para o ser humano... "O mundo não pára", nós também não podemos parar...