29 fevereiro, 2008

Pelo conceito Perfeito

Para o universo paradigmático, estanque, limitado e definido da realidade acadêmica vai aí um poema de JOÃO PAULO CUENCA, presente no livro O DIA MASTROIANNI.
Nessa obra o autor apresenta um relato sarcástico de uma geração que caminha do nada para lugar nenhum. O protagonista se entrega ao nada que é fruir o dia mastroianni. Despreza todo e qualquer compromisso com a realidade. Pouco se importa, por exemplo, com o registro disse que chamam realidade.
"Não imagino há quanto tempo não leio o jornal. Sei que, na última vez que o fiz, o pano caiu ante meus olhos: descobri que nada acontece. É o maior de todos os segredos. Depois, nunca consegui entender por que eles lêem o diário, discutem sobre as últimas (des)notícias, o que chamam de "realidade", de "mundo". Isso não me faz sentido algum."
Pedro Cassavas, o protagonista, e o personagem amigo Tomás Anselmo são jovens. Se recusam a trabalhar. Preferem ser trabalhados. Se recusam a trabalhar pois se acreditam bons demais, tão excelentes que poderiam fazer tudo o que desejassem, mas nada ambicionam. Desconhecem o prazer de um plano realizado. Conversam apesar de professar que todas as conversas são inúteis. E bebem. Tudo o que for alcoólico. Querem drinques gratuitos e prazeres interditos. Para eles o hoje é uma ilusão. A dupla se recusa para agir porque "nada nunca acontece ou acontecerá, independente do que façamos no mundo". Eles tem saudades do que nunca aconteceu.


Nas páginas do livro ...

"Verônica e alguns frequentadores do Monga Bar e do Café almofada e inúmeros outros jovesn curitibanos declamam, em alta voz, de repente num porão qualquer, uma canção que é hino e profissão de fé dos eternos adulteens:


Eu quero o conceito perfeito,
o mundo cor-de-rosa num sonho infantil,
a pura ignorância pequeno burguesa,
eu quero o olhar perdido de um cão
Eu quero o slogan maior,
farta mesa da família nórdica,
breakfast, fastfood, junkfood,
eu quero uma vida feliz e rasteira
Eu quero o timming perfeito,
a fórmula do seu sucesso,
jogo de cintura, espiritualidade
eu quero ser um alfa-beta
Eu quero o clímax perfeito,
o travelling final majestoso,
o diálogo perspicaz, elegante,
eu quero o charme ambíguo do galã
Eu quero o sexo perfeito,
sem lençóis sujos ou movimentos bruscos,
inodoro, depilado, com as luzes acesas,
eu quero amor enlatado
Eu quero o conceito perfeito..."

28 fevereiro, 2008

Pessoa (quem é essa ?)

Vão aí alguns pensamentos de Fernando Pessoa, nascido em Lisboa, em 13/06/1888 e falecido na mesma cidade em 30/11/1935. Escritor de língua portuguesa que tinha a sensiblidade necessária para tocar os acontecimentos mais cotidianos de nossas vidas. Com leveza e perspicácia Pessoa diz sobre o que éramos , o que somos e o que estamos nos tornando ...


Tudo em nós está em nosso conceito do mundo; modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será, para nós, senão o que é para nós..

Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma, que não tem a mentalidade do vencedor. Vence só quem nunca consegue.

Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo.

Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir - é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser. Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e não em ter condições de êxito. Condições de palácio tem qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se não o fizerem ali?

A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.

Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca o sejamos. E mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária.

A renúncia é a libertação. Não querer é poder.

Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre. Tudo quanto vive perpetuamente se torna outra coisa, constantemente se nega, se furta à vida.

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final...Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver.Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos. Não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos da vida que já se acabaram.Foi despedida do trabalho? Terminou uma relação? Deixou a casa dos pais? Partiu para viver em outro país? A amizade tão longamente cultivada desapareceu sem explicações? Você pode passar muito tempo se perguntando por que isso aconteceu....Pode dizer para si mesmo que não dará mais um passo enquanto não entender as razões que levaram certas coisas, que eram tão importantes e sólidas em sua vida, serem subitamente transformadas em pó. Mas tal atitude será um desgaste imenso para todos: seus pais, seus amigos, seus filhos, seus irmãos, todos estarão encerrando capítulos, virando a folha, seguindo adiante, e todos sofrerão ao ver que você está parado. Ninguém pode estar ao mesmo tempo no presente e no passado, nem mesmo quando tentamos entender as coisas que acontecem conosco. O que passou não voltará: não podemos ser eternamente meninos, adolescentes tardios, filhos que se sentem culpados ou rancorosos com os pais, amantes que revivem noite e dia uma ligação com quem já foi embora e não tem a menor intenção de voltar. As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas realmente possam ir embora...Por isso é tão importante (por mais doloroso que seja!) destruir recordações, mudar de casa, dar muitas coisas para orfanatos, vender ou doar os livros que tem. Tudo neste mundo visível é uma manifestação do mundo invisível, do que está acontecendo em nosso coração... e o desfazer-se de certas lembranças significa também abrir espaço para que outras tomem o seu lugar.Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. Ninguém está jogando nesta vida com cartas marcadas, portanto às vezes ganhamos, e às vezes perdemos.Não espere que devolvam algo, não espere que reconheçam seu esforço, que descubram seu gênio, que entendam seu amor. Pare de ligar sua televisão emocional e assistir sempre ao mesmo programa, que mostra como você sofreu com determinada perda: isso o estará apenas envenenando, e nada mais. Não há nada mais perigoso que rompimentos amorosos que não são aceitos, promessas de emprego que não têm data marcada para começar, decisões que sempre são adiadas em nome do "momento ideal". Antes de começar um capítulo novo, é preciso terminar o antigo: diga a si mesmo que o que passou, jamais voltará!Lembre-se de que houve uma época em que podia viver sem aquilo, sem aquela pessoa - nada é insubstituível, um hábito não é uma necessidade.Pode parecer óbvio, pode mesmo ser difícil, mas é muito importante.Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida.Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é. Torna-te uma pessoa melhor e assegura-te de que sabes bem quem és tu próprio, antes de conheceres alguém e de esperares que ele veja quem tu és..E lembra-te:Tudo o que chega, chega sempre por alguma razão

Um dia a maioria de nós irá se separar!!!Sentiremos saudades de todas as conversas jogadas fora, as descobertas que fizemos, dos sonhos que tivemos, dos tantos risos e momentos que compartilhamos. Saudades até dos momentos de lágrima, da angústia, das vésperas de finais de semana, de finais de ano, enfim do companheirismo vivido. Bem eu sempre pensei que as amizades continuassem para sempre!!!Hoje não tenho mais tanta certeza disso :(Em breve cada um vai pra seu lado, seja pelo destino, ou por algum desentendimento, segue a sua vida, talvez continuemos a nos encontrar quem sabe nos e-mails trocados. Podemos nos telefonar conversar algumas bobagens..Aí os dias vão passar, meses..anos..até este contato tornar-se cada vez mais raro. Vamos nos perder no tempo...Um dia nossos filhos verão aquelas fotografias e perguntarão? Quem são aquelas pessoas? Diremos...Que eram nossos amigos!E isso vai doer tanto! Foram meus amigos, foi com eles que vivi os melhores anos de minha vida. E a saudade vai apertar.Por isso, fica aqui um pedido deste humilde amigo: não deixemos que a vida passe em branco, e que pequenas adversidades sejam a causa de grandes tempestades.... Eu poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!

Posso ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não esqueço de que minha vida é a maior empresa do mundo. E que posso evitar que ela vá à falência. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um não. É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo...

Fernando Pessoa

Vale a pena conferir mais ...

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_pessoa
http://www.pensador.info/autor/Fernando_Pessoa/
http://www.pessoa.art.br/
http://www.germinaliteratura.com.br/fp.htm
http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso.html
http://fredb.sites.uol.com.br/pessoa.html
http://www.revista.agulha.nom.br/fpesso.html

Ops ... será que sabemos quem é o paciente ?


Deixe as pessoas pensarem que governam e elas serão governadas.
William Penn

27 fevereiro, 2008

Questão de ponto de vista




Há pessoas que transformam o sol numa simples mancha amarela, mas há aquelas que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol.


Pablo Picasso

O dilema da transgressão, o dilema do novo (conhecimento)

Salve pessoal.
Esse poste é um fragmento da obra de GRACILIANO RAMOS, um capítulo chamado INFERNO e que faz parte do livro INFÂNCIA. Esse livro conta o processo da, com já diz o título do livro, infância de um rapaz que vive com seus pais e suas duas irmãs no nordeste brasileiro. O fragmento escolhido representa uma das vezes em que o personagem principal, inserido em um momento de descobertas sobre o mundo, questiona a realidade imposta a ele, confrontando sua mãe sobre as verdades que lhes são dadas no contexto em que vivem.

Considero oportuno esse fragmento pois levanto a bandeira de necessariamente nos portarmos como leigos diante dos questionamentos sobre o mundo. Temos que nos preparar para o acaso, o inesperado e a surpresa. Deixando em aberto os caminhos que nossas vidas podem tomar. Quanto mais certezas tivermos sobre o que nos cerca, menores são as possibilidades de nós nos permitimos a novas experiências e menor também é a gama de caminhos que teremos oportunidade de seguir, fazendo com que nossas vidas se tornem algo pré-determinado e certo, estanque e natural, algo monotonamente estável.

A sede de conhecimentos é incompatível com a estabilidade. Ela é sedenta pelo novo e se apaixona a cada dia por aquilo que desconhece, propiciando um ciclo de encantamento que se encerra no dia em que esse conhecimento é revelado. A luz ofusca o conhecedor e isso faz com que esse tente se afastar da mesma. Quando mais próximo da luz o conhecedor se encontrar, mais problemas de visão ele terá e mais longe da condição de conhecedor ele se encontrará.

Infelizmente, nesse mundo em que estamos, a busca pela luz parece ser o grande ponto que todos querem alcançar. A estabilidade, inimiga natural do conhecimento, é o grande sonho de muitas pessoas. Talvez seja por isso mesmo que o mundo esteja em tamanho descompasso, achando que ter é melhor que ser ou que vomitar formulas prontas é melhor que admitir novos paradigmas, pensando em novas soluções.
Se me perguntarem sobre a cura dessa doença não darei soluções. Só alerto sobre a importância de recorrer ao nosso passado onde, provavelmente não encontremos as soluções para os nossos problemas mas, com certeza poderemos observar onde estão nossos erros, repara-los e abrir espaço...

GRACILIANO RAMOS – INFÂNCIA

INFERNO


As vezes minha mãe perdia as arestas e a dureza, animava-se, quase se embelezava. Catorze ou quinze anos mais moço que Lea, habituei-me, nessas tréguas curtas e valiosas, a julgá-la criança, uma companheira de gênio variável, que ra necessário tratar cautelosamente. Sucedia desprecatar-me e enfadá-la. Os catorze ou quinze anos surgiam entre nós, alargavam-se de chofre – e causavam-me desgosto.

Um dia, em maré de conversa, na prensa de farinha do copiar, minha mãe tentava compor frases no vocabulário obscuro dos folhetos. Eu me deixava embalar pela música. E de quando em quando aventurava perguntas que ficavam sem respostas e perturbavam a narradora.

Súbito ouvi palavra doméstica e veio-me a idéia de procurar a significação exata dela. Tratava-se do inferno. Minha mãe estranhou a curiosidade: impossível um menino de seis anos, em idade de entrar na escola, ignorar aquilo. Realmente eu possuía noções. O inferno era um nome feio, que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal-educadas mandavam outras, em discussões. E num lugar existem casas, árvores, açudes, igrejas, tanta coisa, tanta coisa que exigi uma descrição. Minha mãe condenou a exigência e quis permanecer nas generalidades. Não me conformei. Pedi esclarecimentos, apelei para a ciência dela. Porque não contava o negócio direitinho? Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os moradores, péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres, viviam depois de mortos em fogueiras maiores que as de São João e em tachas de breu derretido. Falou um pouco a respeito dessas criaturas.

Fogueira de São João eu conhecia. Tinha-se feito uma diante de casa. Eu andara à tardinha em redor do monte de lenha que o moleque José arrumava. Admirando os aprestos, espantava-me de haver nascido ali de supetão um mamoeiro carregado de frutos verdes. À noite deitara-se na pilha uma garrafa de querosene, viera um tição. E eu ficara na calçada até dez horas, olhando as labaredas, que meu pai alimentava com aduelas e sarrafos. A gente da vila mexia-se, ria e cantava, iluminada por outros fogos. No dia seguinte as folhas do mamoeiro se torravam, pulverizavam. E na rua, desentulhada, apareciam grandes manchas negras.

Também conhecia o breu derretido. No armazém, barricas finas continham sustância escura que, pisada, tomava a cor das moedas de vintém livres do azinhavre, raspadas no tijolo, molhadas e enxutas. Eu havia esfarelado um pedaço dessa maravilha, com um peso de meio quilo, junto à balança romana da loja. Tinha posto a massa dourada num cartucho de jornal, riscado um fósforo em cima e esperado o fenômeno. Uma lágrima correra no papel, alcançara-me o dedo anular, descera da unha à primeira falange. Largando a experiências, eu me desesperara, abafando os gritos, fora meter a mão num pote de água. Tinha sofrido em silêncio, receando que percebessem a traquinada e a queimadura.

Quando minha mãe falou em breu derretido, examinei minha cicatriz do dedo e balancei a cabeça, em dúvida. Se o pequeno torrão, esmagado com o peso de meio quilo, originara aquele desastre, como admitir que pessoas resistissem muitos anos a barricas cheias derramadas em tachas fundas, sobre a fogueira de São João?

- A senhora esteve lá ?

Desprezou a interrogação inconveniente e prosseguiu com energia.

- Eu queria saber se a senhora tinha estado lá.

Não tinha estado, mas as coisas se passavam daquela forma e não podiam passar-se de forma diversa. Os padres ensinavam que era assim.

- Os padres estiveram lá ?

A pergunta não significava desconfiança na autoridade. Eu nem pensava nisso. Desejava que me explicassem a região de hábitos curiosos. Não me satisfaziam as fogueiras, as tachas de breu, vítima e demônios. Necessitava pormenores.

Minha mãe estragara a narração com uma incongruência. Assegurava que os diabos se davam bem na chama e na brasa. Desconhecia, porém, a resistência das almas suplicadas. Dissera que elas suportariam padecimentos eternos. Logo insinuara que, depois de estágio mais ou menos longo, se transformariam em diabos. Indispensável esclarecer esse ponto. Não busquei razões, bastavam-me afirmações. Achava-me disposto a crer, aceitaria os casos extraordinários sem esforço, contato que não houvesse neles muita incompatibilidade. Reclamava uma testemunha, alguém que tivesse visto diabos chifrudos, almas nadando em breu. Ainda não me havia capacitado de que se descrevem perfeitamente coisas nunca vistas.

- Os padres estiveram lá ? tornei a perguntar

Minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinha estado, claro que não tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam tudo no seminário, nos livros.

Senti forte decepção: as chamas eternas e as caldeiras medonhas esfriaram. Começava a julgar a história razoável, adivinhava por que motivo Padre João Inácio, poderoso e meio cego, furava os braços da gente, na vacina. Com certeza o Padre João Inácio havia perdido um olho no inferno e de lá trouxera aquele mau costume. A resposta de minha mãe desiludiu-me, embaralhou-me as idéias. E pratiquei um ato de rebeldia:

- Não há nada disso.

Minha mãe esteve algum tempo analisando-me, de boca aberta, assombrada. E eu, indignação por se haverem dissipado as tachas do breu, os demônios, o prestígio de Padre João Ináciom repeti:

- Não há não. É conversa.
Minha mãe curvou-se, descalçou-se e aplicou-me várias chineladas. Não me convenci. Conservei-me dócil, tentando acomodar-me às esquisitices alheias. Mas algumas vezes fui sincero, idiotamente. E vieram-me chineladas e outros castigos oportunos.



25 fevereiro, 2008

O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflecte.

Aristóteles


Conhecimentos

O texto a seguir foi escrito por Lima Barreto e está presente em seu livro FEIRAS E MAFUÁS, datado de 13/03/1930. Nesse texto, de título A UNIVERSIDADE, o autor faz uma crítica a estrutura da instituição de ensino superior, vulgo ensino de 3 º grau, ou ainda, a universidade.

Apesar de concordar com boa parte das palavras de Lima Barreto, não posso deixar de expressar minha particular e humilde opinião em que, enfatizo a importância de consideração de todo e qualquer conhecimento, seja ela vindo de instituições de ensino hierarquicamente estruturadas ou transmitido oralmente através de gerações. Digo isso por conta das opiniões que já ouvi e não concordei, quando observei na fala de amigos, colegas e desconhecidos, intenções de desprezo que se prendiam a pontos específicos de certas estruturas e que acabavam por desconsiderar conhecimentos vastos que não diziam respeito a realidade do falante.

Urbanóide que sou, certa vez me fui ao litoral tirar férias. Estando lá encontrei um nativo que gentilmente puxou uma conversa comigo ao mesmo tempo em que admirávamos a beleza estonteante da linha do horizonte no alto mar. Entre palavras soltas e histórias do passado esse velho senhor me contou uma ficção em que um homem dotado de alta capacidade intelectual pediu a um pescador uma carona para o outro lado da ilha. O pescador, seguindo o seu protocolo de trabalho diário, levou o intelectual de graça pois o caminho desejado pelo mesmo era igual ao que o pescador fazia todos os dias. No meio do caminho o intelectual, que levava muitos livros consigo, perguntou ao pescador:
- o senhor sabe ler ?
- Não sei. respondeu o pescador.
-Como não ?? respondeu o intelectual. Ler é uma grande dádiva e, desculpe-me o senhor, mas não sabendo ler o senhor perdeu, no mínimo e chutando baixo, metade de sua vida.

O pescador que já era ciente dessa deficiência, consentiu com o intelectual mas não poder fazer nada e não viu nenhuma vantagem em aprender a ler em tal estágio avançado de sua vida.
Algum tempo depois o intelectual reapareceu e pediu ao pescador que o ajudasse na mesma tarefa. Só que desta vez para voltar de onde eles haviam partido certa vez.
Conversa ia e conversa voltava entre o intelectual e o pescador até que no meio do caminho o tempo fechou e o mar, até então calmo, tornou-se um liquidificador de barcos, forçando a queda do pescador e do intelectual na água que antes de cair ainda puder trocar algumas palavras:
- O senhor sabe nadar ? perguntou o pescador.
- Não sei, respondeu o intelectual.
- Então o senhor perdeu toda a sua vida.

Eu olhei para o meu lado reparando nas vestes de pescador que esse senhor portava. Na mesma hora ele me disse:
- Nadar é coisa mais importante do mundo.
Eu me virei para frente novamente e fitei o encantado horizonte. Não consegui me concentrar em sua beleza, estava refletindo nas palavras do velho senhor. Que naquela hora disse algo que realmente me fez sentir a vida. Entendendo que saber nadar estando de frente para tanta água era o que eu mais deveria saber no momento...
Defendendo todo e qualquer conhecimento, desde que contextualizado em sua possibilidade real de aplicação, deixo minhas palavras e apresento, Lima Barreto.


A Universidade

Voltam os jornais a falar que é tenção do atual governo criar nesta cidade uma universidade. Não se sabe bem por quê e a que ordem de necessidade vem atender semelhante criação. Não é novo o propósito e de quando em quando, ele surge nas folhas, sem que nada justifique e sem que venha remediar o mal profundo do nosso chamado ensino superior.

Recordação da idade média, a universidade só pode ser compreendida naquele tempo de reduzida atividade técnica e científica, a ponto de, nos cursos de suas vetustas instituições de ensino, entrar no estudo de música e creio mesmo a simples aritmética.

Não é possível, hoje, aqui no Brasil, que essa tradição universitária chegou tão diluída, criar semelhante coisa que não obedece ao espírito do nosso tempo, que quer nas profissões técnicas cada vez mais especialização.

O intuito dos propugnadores dessa criação é dotarnos com um aparelho decorativo, suntuoso, naturalmente destinado a fornecer ao grande mundo festividades brilhantes de colação de grau e sessões solenes.

Nada mais parece que seja o intuito da ereção da nossa universidade.
De todos os graus de nosso ensino, o pior é o superior; e toda a reforma radical que se quisesse fazer nele, devia começar por suprimi-lo completamente.

O ensino primário tem inúmeros defeitos, o secundário maiores, mas o superior, sendo o menos útil e o mais aparatoso, tem o defeito essencial de criar ignorantes com privilégios marcados em lei, o que não acontece com os dois outros.

Esses privilégios e a diminuição da livre concorrência que eles originam, fazem que as escolas superiores fiquem cheias de uma porção de rapazes, alguns às vezes mesmo inteligentes, que, não tendo nenhuma vocação para as profissões em que simulam estar, só têm em vista fazer exames, passar nos anos, obter diplomas, seja como for, a fim de conseguirem boas colocações no mandarinato nacional e ficarem cercados do ingênuo respeito com que o povo tolo cerca o doutor.
Outros que só se destinam a ter título de engenheiro que efetivamente quer ser engenheiro e assim por diante, de forma que o sujeito se dedicasse de fato aos estudos respectivos, não se consegue com um simples rótulo de universidade ou outro qualquer.

Os estudos propriamente de medicina, de engenharia, de advocacia, etc. deviam ficar separados completamente das doutrinas gerais, ciências constituídas ou não, indispensáveis para a educação espiritual de quem quer ter uma opinião e exprimi-la sobre o mundo e sobre o homem.
A esse ensino, o estado devia subvencionar direta ou indiretamente; mas o outro, o técnico, o de profissão especial, cada um fizesse por si, exigindo o Estado para os seus funcionários técnicos que eles tivessem um estágio de aprendizagem nas suas oficinas, estradas, hospitais, etc...
Sem privilégios de espécie alguma, tendo cada um de mostrar as suas aptidões e preparo na livre concorrência com os rivais, o nível do saber e da eficiência dos nossos técnicos (palavra da moda) havia de subir muito.

A nossa supertição doutoral admite abusões que, bem examinadas, são de fazer rir.
Por exemplo, temos todos nós como coisa muito lógica que o diretor do Lloyd deve ser engenheiro civil. Por quê ? Dos telégrafos, dos correios – por quê também ?
Aos poucos, na Central do Brasil, os engenheiros foram avassalando os grandes empregos da “gema”.
Por quê ?

Um estudo nesse sentido exigiria um trabalho minucioso de exames de textos de leis e regulamentos que está acima da minha paciência; mas era bom que alguém tentasse fazê-lo, para mostrar que a doutomania não foi criada pelo povo, nem pela avalanche de estudantes que enche nossas escolas superiores; mas pelos dirigentes , às vezes secundários, que a fim de satisfazer preconceitos e imposições de amizade, fora, pouco a pouco ampliando os direitos exclusivos do doutor.

Ainda mais. Um dos males, decorrentes dessa supertição doutoral, está na ruindade e na estagnação mental do nosso professorado superior e secundário.
Já não bastava a indústria do ensino para fazê-lo mandrião e rotineiro, veio ainda por cima a época dos negócios e das concessões.

Explico-me:
Um moço que, aos trinta anos, se faz substituto de uma nova faculdade ou escola superior, não quer ficar adstrito às funções de seu ensino. Pára no que aprendeu, não segue o desenvolvimento da matéria que professa. Trata de arranjar outros empregos, quando fica nisso, ou, se não – o que é pior – mete-se no mundo estridente das especulações monetárias e industriais da finança internacional.

Ninguém quer ser professor como são os da Europa, de vida modesta, escarafunchando os seus estudos, seguindo o dos outros e com eles comunicando ou discutindo. Não; o professor brasileiro quer ser um homem de luxo e representação, para isso, isto é, para ter meios de custear isso, deixa às urtigas os seus estudos especiais e empresta o seu privilégio aos homens de muitas ocupações bem ou mal-intencionados.

Para que exemplificar ? Tudo isso é muito sabido e basta que se fale em geral, para que a indicação de um mal geral não venha a aparecer como despeito e ataque pessoal.
A universidade, coisa sobremodo obsoleta, não vem curar o mal do nosso ensino que viu passar todo o século de grandes descobertas e especulações mentais de toda a sorte, sem trazer, por qualquer dos que o versavam, um quinhão por mínimo que fosse.
O caminho é outro; é a emulação.

23 fevereiro, 2008

abrindo alas

Dale galera.
Inicio esse blog com uma postagem de boas vindas à todos os bons fluidos de um mundo diferente. Um mundo que se preocupa com o próximo, que tem ciência de sua influência e assume a responsabilidade de suas ações.
Um mundo que construímos estando juntos, vivendo em comunidades, sejam elas formadas por associações individuais ou por aglomerações em massa. Um mundo estruturado que se reflete em uma mixórdia de realidades coletivas e em particularidades atomizadas. Um mundo de verdades conflitantes porém um mundo grande, amplo e agregador de certezas e incertezas complexas e flutuantes, que ora se excluem e ora se completam. Montando um quebra-cabeça dependente que faz o sabor amargo buscar incessantemente o doce, tentando encontrar nessa busca a razão e o significado de sua existência.
Temos que saber que ao mesmo tempo em que garimpamos, tendo como objetivo o ouro de nosso redenção, estamos transformando a realidade que está ao nosso redor, que não nos diz respeito até o momento em que entramos em contato com ela e a revolucionamos com nossa busca. Por isso devemos lembrar que somos altamente responsáveis por aquilo que cativamos e com isso é como se os nossos atos grudassem a nós, como a luz ao fósforo: fazendo nosso esplendor, é verdade, mas tão somente à custa de nosso desgaste.
Começamos agora. Terminaremos jamais. Mesmo com o fim, ficam os resquícios...